O homem, na procura do atendimento às suas necessidades básicas, vai construindo sua existência, a qual se dá, sempre, a partir da interrelação entre si, mediado pelo mundo de idéias, num determinado momento e local. É nesta busca, como afirma Marx (1977), que se estabelecem as relações que são determinadas, independentemente da sua vontade. São as relações de produção correspondentes a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais.
As colocações desse autor, como salienta Bianchetti (sem data), alertam para o fato de que, embora saibamos que a sociedade civil foi e é a mola mestra da atuação com a Educação Especial, torna-se necessário que tentemos fazer uma análise não moralizadora da história da Educação Especial, com vilões e heróis e muito menos procurando entender o movimento da história em decorrência de voluntarismos e subjetivismos soltos. É claro que protagonistas e dificuldades se apresentam nesta trajetória. No entanto, na medida das nossas possibilidades, procuramos contextualizar as questões, ou seja, temos a clareza de que cada ação é reflexo, também, da conjuntura em que a pessoa ou grupo está inserido.
Nessa perspectiva, entederemos a forma de as sociedades primitivas tratarem os Pnee, tendo em vista que o atendimento às necessidades na dependência da natureza, como a caça, pesca, abrigos etc., uma das características desses povos, era o nomadismo. É natural, utilizando a lente deles, que o fato de alguém portar algum tipo de deficiência, seja ela congênita ou adquirida, dificultava sua locomoção. Por exemplo, colaborar com o grupo na luta pela sobrevivência fazia dele um estorvo. Consequentemente, eram abandonados sem que com isso lhes pesasse o sentimento de culpa. Até nos dias atuais, há o matricídio de crianças deficientes em várias culturas, inclusive no Brasil, entre várias tribos. E por mais grotesco que possa nos parecer, quando nascem gêmeos, um é sacrificado, independentemente de ter ou não alguma anomalia. Não há uma busca pelas causas. Há apenas um tipo de seleção; os mais fortes sobrevivem. E este é um aspecto que se repercute nas mais diversas situações de sobrevivência também do homem dos nossos tempos, diferenciando-se apenas na forma em que se apresenta, sempre de acordo com os valores de cada sociedade, de cada pessoa, de cada época.
É com o advento do trabalho escravo, passando este a trabalhar para sustentar os seus senhores, que a situação começa a mudar. Surgem a todo o vapor os corpos teóricos, os paradigmas, modelos que vão atravessar os séculos.
No decorrer da caminhada histórica, temos percebido que as sociedades têm-se desenvolvido de forma diferenciada. Naturalmente, em consequência, os valores culturais e as relações que a permeiam são distintos. As que obtiveram um um desenvolvimento tecnológico correspondente às exigências do momento apresentam-se em destaque; as que por algum motivo não conseguiram são percebidas como deficientes, de modo particular, no que se refere à questão educacional, ao ter como parâmetro as sociedades tecnologicamente mais desenvolvidas. Segundo a História, à medida que uma sociedade é menos desenvolvida, menores são os investimentos sociais para a educação.
Em decorrência desse e de vários outros fatores, o direito à educação e as vias para concretizá-lo, embora, às vezes, pareçam ser diferentes, ainda têm sido considerados subalternos pelo poder constituído e pela sociedade, o que se torna gritante no que se refere ao deficiente, cuja classificação como tal corresponde a diferentes critérios.
Segundo Fonseca (1987), a distinção se dá a partir do amadurecimento humano e cultural de cada povo, o qual, de forma "discreta", vai afastando, excluindo da comunidade aqueles que podem, de alguma forma, perturbar o andamento regular das suas atividades, a idealizada ordem social, chamando atenção para o fato de que através dos tempos nas diversas concepções, desde a seleção natural para além da seleção biológica dos espartanos, os quais eliminavam as crianças mal formadas ou deficientes, as crenças sempre foram determinantes. Como nos afirma Lucído Bianchetti. (s.d.),
[...] Se, ao nascer, a criança apresentasse alguma deficiência, era eliminada. Praticava-se uma eugenia radical, na fonte. A eliminação se dava porque a criança se encaixava no 'leito precusto' dos espartanos, passando pelo conformismo piedoso do cristianismo, onde o paradigma ateniense por ter [...] a preferência pela agitada vida da polis, a retórica, a boa argumentação, a filosofia, a contemplação, vão fazer com que, principalmente através da obra de Platão, se abra um interstício, uma fresta, uma fenda entre o corpo e a mente, através da qual vai soprar um vento frio pelo resto da história do mundo ocidental cristão. A divisão, no nível macro, da sociedade ateniense, entre os livres e os escravos, vai ser o protótipo para a divisão no nível micro: a mente (os livres) cabe a parte digna, superior, encarregada de mandar, governar, o corpo (o escravo) degradado, conspirador, empecilho da mente, cabe a missão de executar as tarefas degradadas e degradantes.
Como afirmam os estudiosos, vai ser assumido, cristianizado e levado ao paroxismo pelo judaísmo-cristão, haja vista que os gregos circunscreveram-se ao campo cristão da filosofia, enquanto que na Idade Média esse modelo é assumido no âmbito da teologia, trazendo grandes repercussões, a partir até da terminologia. Deixa de existir a dicotomia corpo/mente e surge corpo/alma. O portador de alguma anomalia deixa de ser morto ao nascer, embora o poder da Igreja Católica na Idade Média (séculos V e XV) tenha mudado ligeiramente o panorama, e até a segregação e marginalização operada pelos exorcistas e conjuradores da Idade Média, a deficiência andou sempre ligada a crenças sobrenaturais, demoníacas e supersticiosas. Isto porque mesmo se, como já dissemos, a Idade Média, ao avançar, vai mudando as concepções anteriores, a história ainda está imbuída de outros conceitos que atrelavam a ideia de deficiência com o pecado, eram as representações daquele momento. Em tempos mais distantes, por exemplo, dos vários milagres de cura etc. feitos por Jesus, quase um terço está relacionado à cura dos surdos, mudos, cegos, gagos, paraplégicos e outros a possessões.
E por interpretações as mais diversas possíveis, essas concepções nos levam a compreender os horrores da segregação e da estigmatização, principalmente de milhares de pessoas que foram eliminadas através da fogueira de inquisição. Processo que almejamos seja entendido enquanto fenômeno histórico e geograficamente localizado, como nos advertem Lucídio Bianchetti e outros autores. Se assim não o fizermos, estaremos nos cedendo a julgamentos morais e moralizadores, os quais, ao nosso entender, não passam de um estreitamento da visão intelectual.
Enfim, nos séculos XVI e XVII, a mitologia, o espiritismo e a bruxaria dominaram a visão da deficiência, de onde surgiram julgamentos morais, perseguições, encerramentos etc; em suma, meios que demonstravam claramente os valores da ordem social e de controle social da época.
À medida que vai aumentando o predomínio pela produção voltada para o mercado, a possibilidade de acumular e de não viver apenas pela subsistência, o avanço da ciência e tecnologia etc., garantem de forma gradativa o domínio do homem sobre a natureza, dando este, em passos firmes, condições para sair do reino das necessidades para o reino da liberdade.
À proporção que o homem vai superando seus limites, buscando novos mercados, as navegações etc vão surgindo paralelamente as justificativas para a hegemonia burguesa. E no lugar do teocentrismo vai se instalando o antropocentrismo.
Em seguida, vem a revolução Francesa e os seus cinco pilares do liberalismo: individualismo, liberdade, propriedade, democracia e igualdade. Esta última deve ser ressaltada porque é ela que traz as repercussões mais interessantes ao analisarmos a Educação Especial neste momento.
Com a produção em série, o deficiente passa a ser utilizado nos trabalhos repetitivos, onde, por determinada deficiência, ele tinha mais eficiência que os ditos normais; o surdo em lugares com barulho insuportáveis etc., assegurando um resultado mais eficiente e menos dispendioso para os industriais, os quais entendiam que, pelo fato de a pessoa deixar de ter um órgão, sentidos, membros etc., não era digna de receber um salário correspondente as atividades, embora os resultados demonstrados por ele fossem melhores do que se executados por outros. Ou seja, o princípio de igualdade cai por terra, não passando de um formalismo.
É só a partir do século XVIII que se começa a educar os deficientes, procurando torná-los preparados para exercerem algumas atividades.
No entanto, no Brasil, as idéias que pudessem vir sustentar essas preocupações só aparecem na segunda metade do século XIX.
Por volta de 1870, o Brasil é invadido por algumas teorias como o Positivismo, o Evolucionismo, o Darwinismo, que, segundo Schwarcz (1997), penetram o nosso cenário de forma simultânea, trazendo consigo as doutrinas raciais que imperaram nesse século. Estas doutrinas tratavam da diferença, desigualdade, incapacidade ou outras denominações que possam ser introduzidas neste contexto, haja vista as denominações sobre a deficiência terem mudado, no decorrer do tempo, para atender às expectativas sociais de cada época. Mas, segundo nossa análise, muito pouco elas significam em benefício do indivíduo. Essas teorias foram de grande importância e mobilizaram vários teóricos dos séculos XIX e XX, e as demais concepções que emergiram após tais formas raciais procuraram difundir idéias a partir de teorias científicas validadas na época que, sempre por trás de outros interesses, afirmavam que pela raça ou pela forma craniana de um indivíduo poderia se saber se ele era mais capaz ou menos capaz que outro.
Nesse sentido é importante registrar que um pensador sergipano se colocou muito atento em seu tempo, questionando essas opiniões. Manuel Bonfim, já no início do século XX, chamava-nos a atenção em sua obra “A América Latina” para os rótulos que as sociedades vêm atribuindo àqueles que de alguma forma podem ser explorados, marginalizados. No que se refere à capacidade ou não de um indivíduo ou grupo, esse autor foi radical em suas convicções. Outro aspecto fundamental e de relevância desse sergipano é que ele esteve diferentemente de alguns dos seus contemporâneos no tocante à capacidade de perceber as questões fundamentais que se deram à sua volta e de captar com veemência as evidências da história.
São muitas as contribuições desse autor e extraordinária a sua capacidade de indignação e esperança, vendo na educação a “tábua da salvação” daquele momento, o caminho para solucionar os problemas do Brasil.
Já no início do século XX, ele discordava de alguns dos seus contemporâneos no que tange, por exemplo, ao pressuposto de que o branqueamento era o meio de melhorar a capacidade cultural do nosso povo. Percebe-se que sua visão era muito avançada; tinha a compreensão de que o parasitismo social, utilizando seus termos, não ocasionava modificações orgânicas como o parasitismo biológico.
Era ingênuo acreditar que fossem somente as influências hereditárias recebidas de um determinado povo que influenciassem sobre maneira no caráter de uma determinada população. Durante um longo período, o negro e o índio foram vistos como seres incapazes, mas para Bomfim, também a passividade e ignorância desses povos eram provenientes das condições sociais à qual pertenciam. Ele dizia:
(...) pensem nas míseras condições desses desgraçados, que jovens, ainda ignorantes, de inteligência embrionária, são arrancados do seu meio natural e transportados a granel, nos porões infectos, transportados entre ferros e açoites, a um outro mundo, à escravidão desumana e implacável (...) se, hoje, depois de trezentos anos de cativeiro (do cativeiro que aqui existia!), estes homens não são verdadeiros monstros sociais e intelectuais é porque possuíam virtudes notáveis (BOMFIM, 1993, p. 238).
Para o autor, a questão da capacidade não estava presa exclusivamente às raças; percebe os defeitos de cada povo como provenientes da falta de educação social. Acreditava que todo homem, fosse ele de qualquer raça, ao receber ensinamentos para o trabalho que denotassem realizações maiores a serem adquiridas por meio de si mesmo, em seu próprio benefício ao trabalho para si, ele
(...) aceitará, crescerá e produzirá.
A inferioridade das raças é um instrumento de poder, um instrumento da exploração capitalista.
É de todos os tempos: que o homem possuindo a força e o poder, não pense em outra coisa senão em dele se servir para obrigar os outros a trabalhar, e para arrancar-lhes os frutos desse trabalho (BOMFIM, 1993, p. 243).
É diante dessas e de outras convicções que esse autor aponta a educação, a instrução, como forma de superar os instintos, os estigmas, e do indivíduo, seja ele branco ou negro, índio ou mulato, europeu ou latino-americano, crescer, produzir, desenvolver-se nos vários aspectos que formam o homem. Ou seja, para Bomfim, a educação era mediadora do processo de amadurecimento do indivíduo.
Por esses relatos vemos que, se de uma forma geral o cidadão tem sido ao longo do tempo marginalizado por conta de questões regionais, raça, cultura, tendo suas funções biológicas de acordo com o estabelecido como normal, imaginemos como têm sido tratados, ao longo dessa mesma história, aqueles que por motivos os mais diferenciados possíveis, têm algum comprometimento físico, sensorial e principalmente intelectual.
Cada época produz suas patologias. Como sabemos, houve a peste e a cólera e, mais próximas de nós, a tuberculose e a sífilis. Todavia, o impacto do desenvolvimento da ciência nas doenças e nas neuroses continua. Se os antibióticos deram conta dessas doenças; se foram descobertas vacinas que extinguiram muitas epidemias, outras doenças, porém, têm aparecido, fazendo, se é que podemos ousar a dizer, fracassar o saber médico, tal como a AIDS, que ainda nos lembra os limites da medicina e o triunfo derradeiro da misteriosa morte, embora a sífilis, entre outras doenças, tenha sido por muito tempo um flagelo maior que a AIDS.
Por outro lado, a medicina que não pára de nos surpreender; que nos leva a crer que possui um saber quase total sobre o corpo; que a matéria viva tem externado seus segredos; que o corpo ao ser decifrado tornou-se transparente, sem mistérios, e como diz Cordié (1996), que com essa leitura médica todo distúrbio não detectado pelos meios habituais de pesquisa, sejam estes biológicos, radiológicos ou outros,torna-se suspeito. Se não se vê nada, é porque não existe nada: nem doença, nem doente. Ou seja, quando o médico não consegue perceber o que está se passando com o paciente, diz que este não tem nada, o que subtende que sua queixa seja simplesmente imaginária, histérica, algo aparentemente simulado.
O saber médico, cada vez mais complexo e tecnicizado, tem procurado progredir. Surgiu uma nova patologia que se situa mais na vertente somática. Atualmente, muitos pacientes têm danos somáticos graves com lesões de órgãos, doenças passíveis, contudo, de acordo com a nossa compreensão, de cura. No bojo dessas questões emergentes, tem tomado o peso de patologia, segundo Cordié (1996), surgiu com a instauração da escolaridade obrigatória no fim do século XIX e tomou um lugar considerável na preocupação dos estudiosos, em conseqüência de uma mudança radical da sociedade.
No contexto atual, podemos dizer que o fracasso escolar se tornou sinônimo de fracasso de vida. Sendo assim, o fracasso, opondo-se a sucesso, implica um julgamento de valor: ser capaz ou incapacitado. Voltamos assim as inquietações de Bomfim e quase que o ouvimos dizer aqui que o valor em si é função de um ideal, eu um indivíduo persegue no decorrer da vida e amadurece nessa busca. Que os ideais são em sua essência, aqueles de seu meio cultural e de sua família e ela mesma, marcada pelos valores da sociedade à qual pertencem.
Entendemos que esses ideais variam de uma cultura para outra; ou seja, o que é valorizado em um certo meio pode ser depreciado em outro, o que leva um indivíduo ou grupo social a marginalizar outro.
A marginalização dos PNEE, caracterizada na quase ausência de atendimento de qualidade na sociedade, é uma ação que reflete uma atitude de descrença nas possibilidades de mudança da situação da pessoa; um consenso social pessimista, fundamentado essencialmente na idéia de que a condição de incapacidade é uma condição imutável e leva a completa omissão da sociedade em relação à organização de serviços para atender às necessidades específicas dessa população.
Nesse sentido, são de extrema relevância os trabalhos educacionais de teóricos como: João Amós Comênio que, no seu “Tratado da Arte Universal de Ensinar a Todos”, faz uma abordagem da questão da Filosofia, no campo da intencionalidade, já que metodologicamente esta questão só vai ser melhor resolvida quatro séculos após, através dos profundos estudos de como se aprende.
Pestalozzi, que dedicou sua vida ao cuidado e educação das crianças pobres; Froebel, ao cuidado das crianças, criador dos Jardins de Infância; Fénelon, que vai se preocupar com a educação das moças, assunto que até o século XIX não havia trazido à tona nenhuma atenção; no século XX, temos Piaget, Vygotsky, ambos voltados para questões relacionadas a como se dá a aprendizagem e ao desenvolvimento de teorias; Freinet, preocupado com as crianças da zona rural e com o sindicalismo; Paulo Freire, dando uma atenção inestimável à alfabetização de adultos etc.
Entretanto, é imersa nestas grandes preocupações com as especificidades que deram suporte à pedagogia da “existência”, que emerge a preocupação com com os PNEE, que ficavam segregados, excluídos. Fatalmente, a preocupação com a especificidade desses percorreu uma estrada cheia de obstáculos.
Retornando à nossa visão panorâmica na história mais amplamente, percebemos que somente no século XX é que se iniciam nos vários países, de forma mais acentuada, os estudos científicos das deficiências, os quais têm-se direcionado, de modo particular, à deficiência mental, destacando-se E. Seguim, criador da teoria psicogenética. Sua pretensão era chegar a um método não só aplicável aos idiotas, como se falava na época, mas a qualquer deficiência mental, manifestada em três vias que se completam, apontando grandes benefícios aos deficientes, como a possibilidade e a necessidade de prevenção; a educabilidade do deficiente e a integração do deficiente como meio e fim.
É a partir dessa e de outras contribuições que a antecederam ou sucederam, de modo particular, pelo sentimento de insegurança, desejo de dividir ou repassar o fardo ou pelo amor da família etc., que surgem as possibilidades de lutar pela integração do deficiente na escola e na sociedade.
A Professora Drª Rita de Cássia Santos Souza é estudiosa e pesquisadora na área da Educação Especial e Inclusiva e tem dado relevante contribuição social neta área, com produções impressas e digitais para maior acessibilidade
Texto replicado deste endereço: