domingo, 26 de maio de 2019

Educação pública numa democracia moribunda

A escola é o mais precioso espaço de cidadania que agrega a diversidade humana movimentando conhecimentos, histórias e afetividades

 

Por Márcia Acioli
Tirinhas: Armandinho

Tirinha do Armandinho cedida por Alexandre Beck 
 O afeto não pode ser arrogante, o diálogo é uma das dimensões mais fundamentais do processo educativo.(Paulo Freire)
 Em uma sociedade democrática é de se esperar que a política de educação reflita seus princípios e que as escolas dialoguem com os anseios da população a quem elas se destinam. É o que vemos acontecer hoje?
Para Paulo Freire, a educação é um exercício constante de reciprocidade. Aprender e ensinar são atitudes inseparáveis que devem focar na superação das opressões e na realização plena da nossa humanidade.
O caráter libertador, segundo Freire, se conquista a partir da leitura do mundo e de uma interpretação crítica e sensível permanente da vida, construção que se dá na interação entre os sujeitos e suas realidades. Ele ainda mostra que a cultura e a ética são centrais no processo dinâmico que é a educação.
Em consonância com essa linha de pensamento, o educador e filósofo Anísio Teixeira, trouxe uma importante contribuição para a educação brasileira, defendendo ‘ensinar a viver com mais inteligência, mais tolerância e mais felicidade’. Ele apostou na educação pública, universal e de qualidade como lugar para o exercício do pensamento crítico e da solidariedade e, para isso, a liberdade e a expressividade são condições essenciais.
Ambos evidenciam que a escolha de uma diretriz pedagógica é uma escolha política e que a educação desemboca na ação transformadora. A educação humanista exige que se pense na sociedade em busca de se contribuir para um mundo melhor, justo e solidário. Paulo Freire e Anísio Teixeira acreditavam que o elo entre o sujeito e a sua realidade é a essência da educação. 

Escola: espaço de cidadania

Sendo a nossa democracia imperfeita e cada vez mais ameaçada e fragilizada, as escolas públicas brasileiras também vivem sérias contradições. Ainda estão mais ancoradas em estruturas conservadoras, com brechas maiores ou menores para experiências diferenciadas. Muitas estão mergulhadas em si, dialogando pouco com as respectivas comunidades.
Ainda assim, a escola é o mais precioso espaço de cidadania que agrega a diversidade humana movimentando conhecimentos, histórias e afetividades. Trabalho digno e participação democrática são conquistas que se dão a partir de construções processuais iniciadas na escola. 


Não é de hoje que se criou uma expectativa, propagada principalmente por instituições privadas, sobre a educação como a possibilidade de ‘escalada para o sucesso’, resultando em um campo de disputas mais do que uma construção coletiva de um projeto comum. Nesse caso, o que interessa é o desenvolvimento de habilidades e competências, como se pudessem ser isoladas da complexa existência em sociedade. A educação elitista, em última instância, forma para competir, para promover melhores performances em concursos e vestibulares ou para uma colocação no mercado de trabalho.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) defende uma concepção mais ampla do direito à educação, que vai além da formação técnica. No seu Art. 53 diz que “A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes: I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II – direito de ser respeitado por seus educadores; III – direito de contestar critérios avaliativos, podendo recorrer às instâncias escolares superiores; IV – direito de organização e participação em entidades estudantis; V – acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência. Parágrafo único. É direito dos pais ou responsáveis ter ciência do processo pedagógico, bem como participar da definição das propostas educacionais.
Do mesmo modo, o Art. 58 conclui que “No processo educacional respeitar-se-ão os valores culturais, artísticos e históricos próprios do contexto social da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade da criação e o acesso às fontes de cultura”.

Tirinha do Armandinho cedida por Alexandre Beck
 
Em resumo, o direito proclamado na Constituição brasileira, assim como no ECA e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) é o direito à educação de qualidade, calcada no respeito às culturas locais e à participação da comunidade na construção da escola pública. 

Os riscos da educação domiciliar 

A defesa injustificável pela educação domiciliar, proposta do atual governo, restringe a experiência das crianças e priva-as do convívio com outras. É na interação com as pessoas que se aprende a escutar, a associar ideias, a criticar, a apreciar, a fazer escolhas, a discernir o ético do não ético e, com isso, construir um pensamento autônomo.
O mais importante é conhecer pessoas e crescer com o exercício da empatia. O risco de se criar sujeitos autocentrados e insensíveis ao outro é grande.
A escola militarizada é outro problema, pois traz na prática uma educação autoritária, arbitrária que, com normas e ritos rígidos, contraria o direito à livre expressão e à participação asseguradas nas leis brasileiras. A censura às universidades públicas e os cortes de verbas, com destaque para a pesquisa, ameaçam o desenvolvimento da ciência e da criação de soluções para problemas importantes do país em todas as áreas como saúde, tecnologia, meio ambiente, questões sociais.


A Emenda Constitucional do Teto de Gastos Públicos, que congela por vinte anos os investimentos nas áreas sociais, aponta para um péssimo cenário de precarização do que já não estava perfeito. Além disso, o decreto 9.741, publicado em março deste ano em edição extra do Diário Oficial da União, contingencia R$ 29,582 bilhões do orçamento federal de 2019. A Educação perdeu R$ 5,839 bilhões, cerca de 25% do previsto.
Considerando o princípio da universalização do direito, é inconcebível haver um ‘bom’ direito para poucos e um ‘precário’ para muitos. Com estes cenários, escolas privadas destinadas a seletas famílias terão acesso a boas estruturas com laboratórios, espaços para teatro, esportes, boas metodologias e práticas pedagógicas inovadoras, professores qualificados. Já as escolas públicas terão que sobreviver à custa do sangue e suor dos trabalhadores e trabalhadoras da educação com salários baixos e péssimas condições para o exercício da profissão. Sem fôlego e sem recursos, a tendência óbvia é a educação pública definhar.

Por Márcia Acioli, assessora política do Inesc

Texto replicado deste endereço: CARLOS - Professor de Geografia

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